OUTROS "CAUSOS"

OS FANTASMAS ASSOMBRADOS

 

Tanto no boteco do Zezico quanto no do Nonô Horta, os “sapos” em volta da sinuca, para desespero dos jogadores, eram de uma atividade marcante.

– Vai na quatro, Bernado, bota efeito contrário que a sete vai melá – palpitava o Pé de Chumbo com ares professorais

– Cê num tá veno que se fizé isso ele vai suicidá, interrompia o Dissales. Ele tem é que recuá a branca, pegano premero a vermeia e dano uma sinuca no Alderano atrás da bola quatro.

Os palpites eram os mais variados possíveis e, às vezes, era necessário aos adversários solicitar uma vaguinha em volta da mesa para darem as respectivas tacadas. O grupo só se dissolvia quando um os jogadores perdia a paciência e agredia a turma com alguns palavrões ou ameaçava acionar o taco contra eles.

Na tarde daquele domingo, porém, a turma tinha outro motivo a discutir: era a valentia e coragem que o Gestal dizia ter em relação a fantasmas e assombrações que todos acreditavam existir aos montes na região.

– Isturdia eu uvi ele dizê qui tinha ido ao sumintero fazê serenata pros difunto! Disse qui ficô das onze até as treis hora da madrugada e num cunteceu nada! – comentou assustado o Alfredo Preto.

– Isso num é nada, emendou o Zé Gato. Nas coresmas ele disse qui vai sozinho lá pros lado da Varge do Lobo e da Gruta do Frutuoso caçá araticum toda sexta-fera dispois da meia-noite. Fala sempre qui é pra vê se incontra argum lubisome ou mula-sem-cabeça pra batê um papo!

O Bejo, com seus óculos de potentes lentes para amenizar o elevado grau de miopia, logo interrompeu:

– Nois pricisa é de dá uma lição no Gestal pra ele deixá de sê papudo!

– É fáci, concluiu o Alfredo Preto. Nois seis vamo mandá a Crarice fazê aquelas ropa que os fantasma usa e na quarta-fera nós vai pro sumintero véio e quando o Gestal vortá da casa do Cirilo onde fica inté tarde noivano com a Sanica, nois sai tudo de uma veis só, gritano e correno pra dá o maió susto nele!

E, honra seja feita, o Gestal era valente mesmo. O seu porte franzino era compensado por muita coragem e determinação. Em se tratando de assuntos do além, ele jamais fugia a um desafio. Até mesmo provocava situações para provar que realmente não tinha medo de fantasmas, ao contrário da maioria dos amigos que se arrepiavam só ao ouvir suas narrativas.

– Já fui várias vezes ao alto do cruzeiro para me encontrar com a famosa luz que assombra todo mundo. Por mais que eu a desafie, ela nunca me apareceu! Queria que viesse para iluminar o meu caminho de volta! – concluía destemidamente o Gestal.

Embora achando estranho, a Clarice, profissional das mais competentes, aceitou a encomenda. Seria costurada uma das partes mais estreitas dos lençóis que lhe foram entregues, recortando neles dois orifícios à altura dos olhos. Uma tira de pano cingiria a cintura e evitaria que a mortalha se abrisse na parte de trás.

O Gestal, que era alfaiate e amigo da Clarice, ao levar algumas calças para ela arrematar, foi colocado a par da inusitada encomenda, a sua finalidade e até o dia em que seria utilizada. Pedindo o maior sigilo, solicitou que ela lhe fizesse uma mortalha idêntica.

Na quarta-feira seguinte, no cemitério desativado que ficava nas proximidades onde é hoje o Asilo Padre Augusto Horta, na Rua Otacílio Negrão de Lima, o Gestal chegou, vestiu a roupa e se postou atrás de uma pequena elevação. Daí a pouco chegaram os seis rapazes, vestiram os paramentos e ficaram à espreita. O relógio da Matriz já houvera batido as dez horas e nada do homem... Um certo temor e nervosia já se fazia sentir entre eles e, com o decorrer do tempo, o medo mais se avolumava...

– Só fico aqui até as dez e meia. Dispois disso, disisto de tudo – cochichou o João Agachado com o Antônio do Cabo.

– Vamo isperá mais um poco só – pediu o Bejo que, para maior comodidade, portava os óculos sobre a parte externa da mortalha. – É pur aqui qui ele passa toda noite assubiano a “La Cumparsita” e num vai sê hoje qui vai faiá – concluiu.

Quando já se aproximava as onze horas, sorrateiramente, o Gestal esgueirou-se para a retaguarda da turma e empostando uma voz cavernosa, perguntou:

– Afiná, quantos nois semo?

– Seis – disse logo um dos “fantasmas”.

– Tem um trem isquisito aqui! Pode contá: um, dois, treis... cumigo sete! Se nois é seis, tem uma sombração de verdade aqui cum nois!

E para apavorar ainda mais a turma, subiu a um jazigo, imitou o agouro horripilante da coruja, abriu os braços e, logo após, emitiu o grito sinistro dos fantasmas:

– Uuuuuuuuuuuu!

Todos, na maior correria, procuravam se safar pelo portão em ruínas, menos o Bejo que devido à deficiência visual, tomou o lado dos fundos do quintal do Tão Bode, que divisava com o cemitério.

Claro que não viu a frágil cerca de arame farpado, derrubando-a com o impacto e despertando o Leão, o cão vira-latas que saiu em sua perseguição, latindo desesperado e acordando o proprietário da casa.

– Jorge, chama o Alonso qui eu vô pegá a ispingarda lá atrás da porta pra vê se é ladrão qui tá atacano o galinhero!

Com uma lamparina elevada à altura da cabeça para melhor difusão da claridade, o Tão Bode vasculhou inutilmente todo o quintal e se deteve junto ao buraco de três metros de profundidade onde uma cisterna estava sendo cavada e o Leão insistia em permanecer latindo.

– Percura direito qui eu quero mostrá pra esse gatuno cumo dói uma carga de chumbo no trasero! – dizia ele aos filhos.

Sem os óculos que haviam se perdido no impacto com a cerca e uma torção no tornozelo esquerdo, o Bejo, lá do fundo, só divisava uma tênue claridade e ouvia apavorado as ameaças. Não tinha condição alguma de escalar o buraco onde se despencara na correria e sair daquela vexatória situação, ali permanecendo até o raiar do dia.

Içar o Bejo da cisterna foi relativamente fácil. O difícil foi a explicação ao Tão Bode do que ele estava fazendo no seu quintal àquela hora da noite, no fundo da cisterna e, além do mais, ridiculamente fantasiado de fantasma!