OUTROS "CAUSOS"

PELANCA, O CRAQUE DA CAMISA Nº 2

 

E quando o Otávio Silva e demais jogadores chegavam ao estádio para o treino das tardes de domingo, lá já estava, acocorado sob o pé de lobeira defronte a casa do Prof. Inar, o Pelanca, titular absoluto da lateral direita do segundo time do Paraopeba Esporte Clube.

Tipo singular o Pelanca. Um metro e noventa de altura. Músculos bem distribuídos sob a pele negra, disposição e agilidade temperadas pela atividade constantemente exercida no meio rural, onde a variedade das atribuições exigiam dele a mais apurada forma ­física.

Quando o Otávio, proprietário da bola, das camisas e até do apito e, por isso, presidente e técnico do então decadente Paraopeba, escalava os jogadores nas respectivas posições, havia a recomendação especial ao Pelanca:

– Fica aí na direita e vá com jeito pra não se machucar e nem atingir os adversários.

– Dexa cumigo, sô Otavo. Vô ficá de harfo dereito, tocano pra baxo, onde sempre gostei de jugá.

E o Pelanca levantava-se, atirava a alpercata de sola de pneu de caminhão para o lado, tirava a camisa, arregaçava as pernas da calça até a altura dos joelhos e tomava posição na lateral sem grama do campo.

– Tira a faca da cintura, Pelanca!

– Posso não, sô Otavo. O cigarro eu apago e ponho ele ditrás da oreia, o chapéu eu vô dipindurá lá no gaio da lobera, mais a faquinha eu num posso dispensá. Sem ela parece que fico meio torto e disiquilibrado pru lado...

Os atacantes do time titular – Zezico, Neves, Tucaia, Dilton e Tãozinho da Carmem – por segurança, preferiam sempre jogadas pela direita, evitando confronto direto com o Pelanca, lá do lado contrário. Não que ele fosse violento, mas a virilidade era o recurso usado na execução de sua jogada predileta – o bico – e com ela intimidar os adversários, afugentando-os daquela parte do campo. E o que era mais comum: raramente o Pelanca acertava a bola e, ríspido e estabanado, atingia com as unhas de mais de meio centímetro além da ponta dos dedos, tudo o que se lhe antepunha, fosse a bola, alguma pedra ou o corpo dos jogadores. Chutava tudo, indiscriminadamente!

Naquela tarde, por descuido, o Zezico avançou pelo lado do Pelanca e tentou dominar a bola que estava quicando em frente aos dois. Para obstruir a jogada, o Pelanca, firmou-se na perna esquerda e soltou a direita, errando a bola e acertando em cheio os órgãos genitais do adversário que encolheu-se todo e caiu desfalecido na poeira.

O treino foi interrompido e enquanto alguns procuravam socorrer a vítima, espargindo sobre ele a água que o Prof. Inar usava para lavar os copos onde servia seu famoso aluá, outros, irritados, circulavam o Pelanca, recriminando a rispidez com que disputara a jogada, ameaçando agredi-lo.

Rompendo o cerco, o Pelanca encostou-se no barranco e, também nervoso com o acontecido, encarou os ensandecidos colegas, procurando desculpar-se e desafiando-os:

– Oia, eu fui chutá a bola, errei ela e acertei o Zezico. Num foi pru gosto não. Meu jeito é esse mesmo. Já pidi discurpa pra ele. Agora, se oceis acha qui vai me batê pur isso, peço que venha só treis de cada vez. Mais do qui isso, sô obrigado a usá de outros ricurso.

E acariciando o cabo da faca, pôs fim às ameaças do covarde grupo, subindo o barranco em direção à lobeira, onde vestiu a camisa, desdobrou as pernas da calça, calçou a surrada alpercata e, por um trilho no meio do cerrado, tomou a direção de casa.

Nunca mais voltou ao local!

Esse foi o fim da carreira do Pelanca, ou melhor do Jovino Pereira de Oliveira, que ao contrário do título da matéria, jamais foi craque, sempre jogou sem camisa e, conseqüentemente, nunca teve o número dois estampado nela, até porque àquela ocasião isso não era obrigatório pelas leis do futebol.

Pelanca foi um dos ídolos de minha juventude pela sua correção, humildade e amabilidade. Porém, quando tirava as alpercatas e a camisa, arregaçava a calça, entrava em campo e colocava os músculos em atividade, transformava-se numa fera indomável!

Saravá, Jovino Pelanca, meu “tipo inesquecível”!

Que Deus o tenha!