OUTROS "CAUSOS"

O GALO POLIGLOTA

 

Lá pelas bandas do Boqueirão vivia o Benedito Amaro Oliveira, cuja atividade principal era a criação de galinhas e a cultura de milho e feijão em pequeno sítio que herdara dos pais. Morava com a Donana e três filhos pequenos. Trabalhador e muito caprichoso com a propriedade, Bené, como era conhecido, gostava mesmo era de um “negocinho”. Comprava e vendia de tudo, valendo-se de sua vivacidade, presença de espírito e poder de convencimento. “Catira” era com ele mesmo: trocava galinhas por panela, guarda-chuva por sela usada, canivete por enxada, enfim, fazia qualquer negócio. E sempre levava alguma vantagem nas transações, tanto é que a sua fonte de renda principal era originada dessas barganhas.

O Bené tinha um cavalo baio, o Lampião, que era usado tanto para montaria como para tracionar o arado e um pequeno engenho de cana instalado junto ao córrego que corria nos fundos da propriedade. Muito dócil e bom de sela, era a única coisa que o Bené não admitia negociar.

– Tirano o cavalo, vendo quarqué coisa aqui de casa, dizia orgulhoso. – Esse, pur dinhero ninhum!

Um dia Lampião amanheceu triste, deitado lá no canto do pátio. Bené deu uma olhada e constatou logo: picada de cobra. Mandou chamar Dª Sinhá Benzedeira e, depois da reza, providenciou uma sangria no animal. Nada de melhora: o cavalo continuava cada vez pior.

À noite, chamou a Donana e disse-lhe meio tristonho:

– Minha véia, o jeito é apelá pra São Sebastião. Tenho certeza que o santo márti vai curá nosso Lampião...

– Cê tá certo, Bené. Vamo lá no quarto e ocê faz a promessa perto da image do santo.

Aberto o pequeno oratório, a imagem foi retirada e o Bené, ajoelhado, implorou:

– Meu quirido São Sebastião: o sinhô que é protetô de todos os animá, tanto dos de pena cumo dos de couro, dos que vive n’água e dos qui avua, dos que rasteja e dos qui mora nos fundo da terra, sarve o meu Lampião que tá muito perrengue lá no terrero. O sinhô sabe o tanto qui gosto dele. Num dexa ela morrê não. Oia, São Sebastião, se o meu cavalo ficá bão, eu prometo vendê ele e dá a metade dos cobre pro sinhô. Nunca pensei em dispô dele não, mais prêle num morrê eu faço quarqué sacrifício.

O milagre aconteceu. Para alegria da família, Lampião recuperou-se e logo voltou a ser utilizado nas atividades normais do sítio.

Mas havia o problema com São Sebastião. Era uma preocupação constante. Bené tinha que vender o cavalo para cumprir a promessa. E ele não estava gostando nada disso.

Uma noite, depois de muito pensar, acordou a Donana e ordenou-lhe:

– Amanhã eu vou arresorvê o causo da promessa. Ocê pega aquele galo pedrês qui eu vou saí cedo e levá ele.

– Logo o pedrês que tá mais pra lá do qui pra cá?

– Isso mesmo... Vô niguciá ele...

Amarrou o galo pelos pés na sela do Lampião e foi em direção à casa do Jerônimo, seu compadre e amigo de muitos anos.

– Qui surpresa é essa, cumpade Bené? Deu frumiga na cama? Uma hora dessa?

– Frumiga nada, cumpade Jeromo. Vim vê o Aristeu, meu afiado, e fazê um negocinho cocê...

– Vamo apiá home. Num te ofereço café pruquê a muié e os minino foi pra casa da mãe dela onte e eu num tive tempo de cuá ainda. Mais vô providenciá...

– Carece não, cumpade. Vô demorá poco pruquê tá cum jeito de chuva e eu tenho que guardá uns mio lá in casa.

– Intão, qui negócio veio propô?

– Vim vendê o meu Lampião procê...

– Mais ocê num gosta tanto dele, cumpade. Oia qui é rema da picada da cobra... Né não?

– Né não, cumpade. Pode muntá e dá uma vorta... Vim nele de andadura lá de casa inté aqui e num pricisô nem de ispora...

– E quanto ocê qué no Lampião?

– Parece inté brincadera, cumpade, mais é sério... Te vendo o cavalo cum arreio e tudo pur cinco real. É prova da consideração que tenho cocê e cum o Aristeu...

– O cavalo é meu, cumpade...

E o Jerônimo foi até o quarto buscar o dinheiro para o pagamento.

– Só qui tem um porém, cumpade. Ocê tem qui comprá junto cum Lampião aquele galo qui tá marrado lá na sela...

– E qual é o preço do galo?

– Trezentos real.

– Cê tá é doido. Trezentos real pur um galo?

– Mais num é quarqué galo não, cumpade. Oia, ele é pai de toda aquela frangaiada qui tenho lá in casa. A muié, os minino e as galinha gosta muito dele... Vô te contá o qui cunteceu istrudia. Apareceu lá in casa dois home de fala inrolada dizeno qui tava fazeno pesquisa de fôia de mato... Viro o galo e quiria pruquê quiria comprá ele... Um deles falô qui a “ave era um fenômeno”. Disse qui ele cantava in ingrês, cacarejava in francês e aninhava as galinha in intaliano... E ciscava parecendo um tar de Maco Jecso, cantô lá da terra dele... Oferecero duas nota de cem pelo galo... Eu só num vindi pruquê as notas era de um verde isquisito. Eles disse que era de dólar mais eu num sabia o que era aquilo e só dispois é que o Néia lá do Horto me isplicô que as nota ferecida valia naquele dia trezentos e vinte real ou inté mais.

– Mais eu num tenho trezentos real não, cumpade. Cumé qui nóis faz?

– Aí eu te ofereço otro negoção. Ocê me vende o Lampião que acabô de comprá. Te dô trezentos real nele. Já pensô no lucro, cumpade? Duzentos e noventa e cinco real sem levantá do banco... Oia que num é todo dia que aparece uma portunidade tão boa assim...

O Jerônimo avaliou a situação e concluiu que o negócio era, de fato, muito bom: compraria um cavalo por cinco reais e o venderia por trezentos, além de aumentar o patrimônio com um galo poliglota no valor de 200 dólares.

– Tá fechado, cumpade Bené.

– Intão inté um dia, cumpade Jeromo. Aparece lá in casa... Lembrança pra cumade e bota a benção pra mim no Aristeu...

Bené montou no Lampião e retornou à sua casa. Uma semana depois lá estava ele junto à imagem de São Sebastião, na Igreja de Paraopeba:

– Vim cumpri a promessa meu querido santo. O sinhô me valeu na hora e eu num posso faiá com o prumitido. Vindi o Lampião e tô depositano no seu cofre 3 real, mais da metade do valor do negoço qui fiz... O troco fica valeno pra outra promessa que eu pricisá fazê... Tá intindido? Muito obrigado, meu santinho...