OUTROS "CAUSOS"

A ONÇA ERUDITA E OS VEADOS ENRABADOS

 

Não se podia afirmar que as narrativas das peripécias de caçadas de veado que o João Macaco fazia lá nos cerrados da região de Pompéu, eram a expressão da verdade. Na maioria das vezes, exagerava nos relatos, distorcendo os fatos e, em outras, o que era mais comum, vivenciava situações estranhas nas quais sempre se destacava como o personagem principal. Para não dizer que era um grande mentiroso, afirmamos que às vezes o João atropelava a verdade, inventando estórias inocentes que não prejudicavam nem ofendiam ninguém.

E foi numa dessas caçadas, em companhia do Manacés, do Valdemar e do Antônio Padeiro que o João Macaco me relatou o que talvez tenha sido a maior e mais estranha aventura de sua vida.

– Nós cheguemo lá na berada do Rio Paropeba, acampemo, jantemo, demo comida pros cachorro, disarriemo e sortemo os cavalo e esperemo o dia amanhicê pra cumeçá a caçada. Dispois do quebra-torto, cunfirimo as munição, sortemo a matia e ela esparramô no cerrado. Nada de viado. Vortemo lá pras duas hora e arresorvemo dá uma pescada no rio e tamém num tivemo sorte. No sigundo e tercero dia, a mesma coisa. Nem sinal dos catinguero. Quando nós se aperparava pra vim simbora, o Carrapicho se amarrô numa arve a 200 metros de onde nós tava. Oiava pra riba, latia e rosnava feito um doido. Fumo inté lá e vimo nas grimpa de uma maçaranduba a onça qui o cachorro levantô e que tinha subido na arve pra fugi dele. Era um pau muito arto e isgaiado e qui num dava jeito da gente acertá a bicha cá dibaixo. Os otro cachorro se juntô fazeno um baruião danado e a onça muito apavorada, pulava de gaio em gaio, percurano um meio pra descê e dá no pé. Dispois de muito tempo e veno qui a situação num mudificava, arresorvemo mudá os modo. Mandemo os cachorro calá a boca, iscondemo numa moita qui tinha dibaixo da arve e esperemo inté qui ela acarmasse e arresorvesse saí dadonde tava.

Deu certo. A bicha cumeçô a descê. Mais o Antonho Padero, medroso de dá dó, saiu da moita pra mode corrê, mais num deu tempo. A onça pulô in riba dele, quereno mais fugi do qui agridi. Inquanto o Manacés e o Valdemar socorria o Antonho, qui caiu e tava todo ranhado, eu casquei atrás da pintada. Ela na frente, dispois eu e os cachorro na rabera. Pega daqui, pega dali, isgueia daqui, isgueia daculá, a onça divorteiava pra todo lado, pulava uma moita, eu dava a vorta tamém e cada vez chegava mais perto dela e longe dos cachorro.

– Então sua velocidade era maior do que a da onça e a dos cães?

– Isso mesmo. Essa caçada foi em 1935 e eu tava cum 20 ano e tinha muito forgo, saúde e disposição. Quando eu cheguei a 10 metro da onça, firmei bem a ispingarda no ombro, mirei e quando ia mandá chumbo, se me alembrei que tinha só um cartucho e num quis arriscá pois eu tava imbalado na carrera, o cerrado tava meio arto e a onça negaciava muito. Pudia sê qui eu errasse e num tinha cumo me defendê de uma reação da bicha.

Quando cheguemo mais na frente foi qui cunteceu o qui eu num isperava. Incantuada na curva do rio, a onça parô, sentou in riba do rabo, ficou de mão posta e me pidiu quase chorano:

– Pelo amô de Deus, sô João, num mata eu não. Sô uma onça viúva e tenho quatro fiotinho pra criá...

– Então o animal falou?

– No primeiro momento achei qui fosse um zumbido quarqué nos meus zuvido, mais ela cuntinuô:

– Sô uma mãe sozinha. Uns home marvado matô meu marido e eu tô bandonada aqui no mundo... Pra piorá as coisa, tô cum istrepe no pé isquerdo qui tá me atrapaiano muito nas caçada...

– Um poco mais inquilibrado do susto, perguntei:

– Mais cumo ocê aprendeu a falá? Ocê veio de circo ou tá na iscola de argum papagaio?

– Né nada disso não... Um dia garrei um home qui tava pescano ali no rio. Dirrubei ele e quando já ia fincá os dente na sua goela, sinti um calafrio da cabeça na ponta do rabo e pude intendê o que ele dizia:

– Jesus seja lovado! Sô um profeta de Deus aqui na terra e se me sortá eu atendo treis pidido que ocê fizé, pur mais difici qui eles seja. Viva o Rei, aleluia...

– Eu qui num tava muito interessada em cumê o home pois ele era muito veio, das carne dura, sujo e cum bafo danado de pinga, arresorvi sortá ele e, pra isprimentá as sua promessa, pidi qui eu falasse e intendesse cumo as pessoa, qui minha cor pritinha fosse mudada pra pintada iguar a da minha prima e que arrumasse um onço bunito e forte pra eu juntá mais ele e cunstituí famia.

– Tá certo, aleluia! – disse o home. Só tem um porém. Ocê só vai falá quando tivé no maiô aperto pra sarvá a vida... Deus seja lovado, amém.

– Sortei ele e hoje foi o premero dia qui falei. Os otro dois milagre tamém foi feito...

– E os veados, João?

– Peraí. Cheguei perto da bicha, pedi pra ela me mostrá onde tava o espinho e tirei ele. Ela me deu uma lambidinha de agradecimento, vortô na posição de onça, levantou a pata dereita e mostrô:

– Eles tá tudo lá no chapadão, perto da Serra da Bocaina. Fugiu tudo daqui cum medo de mim. Eu num pude pirsigui eles pruquê os meus fiotes tá muito novo e ainda num sabe nadá pra travessá o rio.

– Vortei pro acampamento e, sem dizê o cunticido, cunvinci os cumpanhero a caçá do otro lado do rio. Aí veio o pobrema: a nossa porva se moiô e nois fiquemo sem munição ninhuma. Mais cumo bom vaquero, resurvi laçá os viado e mandá os cumpanhero marrá cum cipó o chifre dum no rabo do otro, incarriano eles e formano uma filera de uns vintoito. Deu argum trabaio botá os bicho na istrada pra Paropeba, mais divagarinho e cum muita paciença, nois troxe eles tudo, são e sarvo...

 – João, eu sempre duvidei dos casos de suas caçadas, mas dessa vez você pegou pesado demais – disse-lhe para encerrar a conversa. – Vê se manera um pouco, homem...

– Nunca minti na minha vida... O Zifirino Mudinho, meu cumpanhero de otras caçada, pode sê minha tistimunha e prová tudo qui falo. Prigunta pra ele...