OUTROS "CAUSOS"

A METAMORFOSE DA JUPIRA

 

Além do Lampião, seu cavalo de estimação, o Bené do Boqueirão, aquele que ludibriou São Sebastião no cumprimento de uma promessa, possuía também uma égua, a Jupira, que houvera trocado com o Mané Rusguento, lá do Saco da Pedra, por duas leitoas e um berrante. A égua era branca, de porte médio e tinha um grave defeito: era brava e arisca ao extremo. Para trazê-la ao cercadinho era um “Deus nos acuda”. Quinca e Zuíno, por mais que tentassem, nunca conseguiram prendê-la sem a ajuda do pai. Só se conformava com sela depois de muita luta. Reagia à base de coices, empinadas, mordidas, relinchos e outras agressões próprias de sua indocilidade.

– Iantes que a danada dessa égua cause um mar maió, nós pricisa dispô dela, dizia o Bené à esposa Donana. – Cê lembra que istrudia mesmo ela disparô cumigo e dispois isbarrô de repente, baxô a cabeça e eu fui direto nos tijuco de cascaio. Graças a Deus, foi só o susto e a cara toda escalavrada.

– É, carece mesmo. Tenho medo é dela machucá os minino. Aí vai sê pió, respondeu conformada a Donana.

Um dia, a Jupira desapareceu. Depois de procurar no atoleiro, verificar se havia arrombamento na cerca e observar por longo tempo se os urubús estavam rondando algum lugar, o Bené resolveu arriar o Lampião e sair pela vizinhança procurando a égua. Nada, ninguém tinha visto a Jupira. Meio desanimado, já de volta ao sítio, Bené se deparou com um acampamento de ciganos junto à rodovia. Por desencargo de consciência, resolveu aproximar-se e perguntar ao primeiro que viu:

– Cê pur acauso num viu uma égua branquinha passando pur aqui não?

– Non, non, my señor. Yo tengo una yegua sujetada la atras de la caseta mas ela é pampita, negra y blanca, mucho guapa.

O cigano convidou o Bené a descer do cavalo e encaminharam-se ao fundo do acampamento onde o animal estava preso pelo pescoço numa estaca.

– Cê vende ela? perguntou o Bené.

– Bien, mi amigo, a yeguita és del estimación de my hijo. Usted puede ver que ella hallarse preña e garanto que o potrinho é hijo de um garañón espaniol del premera liña, insertada por semen vindo de las Asturias, enviado por mi madre. Debido nuestro caminhon ser pequeño estoi con dificultad in transportar ela y o otro cavallo qui teño, allende los tachos, de la caseta y otras cositas que ocupan gran parte de la carroceria. Todavia, conforme su ofierta, poderemos cambiar.

– Cê vende ou não vende a égua? – perguntou o Bené sem entender nada do que o cigano dissera.

– Qual su ofierta, amigo?

– Te dô 50 real, mais um casal de pato, um mosquetão de istimação, 2 canivete suíço e 5 dúzia de ovo pela pampa.

– Si usted alcanzar aos 100 real, aprobo la ofierta.

Bené pensou um pouco e fechou o negócio. Estava dentro dos seus cálculos.

Tomaram ambos o caminho do sítio. Ao sair, o cigano advertiu que a viagem deveria ser feita bem devagar porque a égua estava com a barriga muito grande e poderia até abortar se fizesse muito esforço. Bené ia à frente, puxando o cabresto do dócil animal e o cigano acompanhando logo atrás em seu cavalo, um pangaré da pior espécie.

Recebido o combinado, o vendedor recomendou que a égua deveria ser mantida sempre presa no cercadinho evitando tomar friagem até o nascimento do potrinho. Despediu-se do Bené e da Donana, regressando ao acampamento.

A esposa e os filhos do Bené ficaram muito satisfeitos com o negócio que ele fizera. À noite houve ligeira chuva, coisa de poucos minutos, embora bastante forte. Não daria para resfriar a égua.

Dia seguinte, bem cedo, o Quinca, o mais ansioso de todos, foi ao cercadinho para ver o animal. Assustado, gritou lá:

– Paiê, a égua pampa sumiu! E cunteceu um milagre: a Jupira vortô e tá aqui no lugá dela! Tá inté marrada!

Bené levantou-se e foi ver o que tinha acontecido. Era a Jupira mesmo, agora sem a barriga e mais indócil que nunca, forçando a corda que a prendia à cerca. No pêlo as marcas do corrimento da tinta preta que o cigano aplicara transformando-a em pampa e que a chuva da noite lavara.

– Ladrão disgraçado! Robô a Jupira, pintô e ainda me vendeu ela! Cê me paga, iscumungado!

Furioso, ensilhou o Lampião, pegou a garrucha e dirigiu-se ao acampamento dos ciganos. No local, só as marcas de cinza e carvão deixadas por eles. Tinham levantado acampamento na noite anterior.

Dali mesmo o Bené partiu para Paraopeba e foi lamentar-se com o seu compadre Enéas, lá no Horto. Relatou o sucedido e foi consolado pelo amigo que lhe perguntou de quanto tinha sido o prejuízo.

– A bem da verdade, num tive não. Os pato que os cigano levou tava cum gôgo, era dois macho e bem véio, coisa de 12 ano cada um. Os dois tinha um dos óio furado e eu cunvinci ele qui era uma nova raça japonesa qui ivitava que eles comesse muito. Só via um bago de mio e passava sem vê o do otro lado. O mosquetão eu achei na berada da rodovia e tava com o cano rachado. Cubri cum cêra o lugá, dei uma lixada boa nele qui ficô pareceno inté qui era novo, mais num valia nada. Os canivete só tinha de bão os saca-roia. Num pegava corte de jeito ninhum. Nem fumo eles picava.

– E ovos? Os 100 reais?

– Treis meis iantes eu tinha mandado a Donana impaiá e juntá num balaio os ovo qui as galinha gorava. Pudia ter arguma sirvintia, né? Intonces o cigano levou 5 dúzia de ovo chôco. Quanto aos 100 real foi mais cumpricado. Num dia eu tava perto da Prefeitura em Paraopeba e parô perto de mim um moço muito bem feiçoado, de terno de casimira e de gravata, pareceno gente fina mesmo qui mi pidiu pra pagá prele uma conta de 50 real lá no açôgue do Roberto. Mim deu uma nota de 100, só qui eu tinha qui vortá 20 real e pudia ficá c‘o troco. Ele tava cum pressa de viajá pra Brasília e num podia delatá mais. Dei o meu dinheiro pro moço e fui inté o açôgue pagá a conta.

– Bené, disse o Roberto, não vendi fiado para essa pessoa. Você ficou sem os seus 20 reais pois essa cédula de 100 é falsa! E tome cuidado! Se a polícia descobrir vai ser difícil explicar ao delegado como ela veio parar nas suas mãos! É cadeia na certa!

– Guardei a nota e foi cum ela qui paguei o cigano.

– Inda tem mais. Pra valorizá a égua e vendê ela mais fáci, ele ferrô a Jupira nos quatro pé. Oie qui ferradô ninhum faz isso pur menos de 30 real! Cê vê qui o prijuízo qui eu tive foi ninhum.

– Só num intendo pruquê a égua era tão braba e ficou mansinha nas mão do cigano e a barrigona qui ela tinha disapariceu dum dia pro otro.

– Ora, Bené, isso é fácil de explicar. A égua foi dopada, por isso estava tão dócil e a barriga foi conseqüência da grande quantidade de água que bebeu depois de comer muito sal. E tem mais: o cigano pediu-lhe que o animal fosse conduzido em passos bem lentos porque a pintura a que foi submetido dissolveria com o suor em caso de marcha mais forçada. Tá ficando bobo, compadre!

– É...