OUTROS "CAUSOS"

COLETE PRETO

 

Nas décadas de 49 e 50, muitos habitantes de Paraopeba eram conhecidos mais pelos sobrenomes advindos de sua ascendência, profissão ou domicílio que pelos reais registros civis. Tínhamos, à época, Antônio Padeiro, Zé Barbeiro, Pedro do Elói, Geraldo do Lamindo, Zezico da Filó, Quintino do Brejo, Zezinho do Mucambo e uma infinidade de outros cujas identidades eram absorvidas pelos portadores e adotadas naturalmente pela comunidade.

Havia também os apelidos, alguns contrastando com o perfil dos portadores, como o Zé Miúdo com quase dois metros de altura e o João Grande, com estatura pouco superior à de um anão. O atlético negro Zé Branquinho e o Negrão, que de sueco só não possuía o porte físico e os olhos azuis. Existiam ainda os criativos, calcados nos atributos físicos, como o João Agachado, o Jeep, o João Vermelho e outros. Mas a grande maioria era de alcunhas gaiatas e sem sentido, como Camueca, Chopin, Pangu, Catita, Palheta, Tucaia, Chiana, Pé de Chumbo etc., que eram absorvidas pelos portadores, até por que não adiantava nenhuma reação em contrário, passando a ser a sua real identidade.

Porém o João Garrote e o Colete Preto nunca aceitaram seus apelidos. O primeiro era um tipo popular e reagia à provocação tentando obrigar o interlocutor a cheirar o bastão que sempre trazia consigo. O outro, o Lausico, pratista competente da “Lira Espírito Santo”, reagia vigorosamente e ofendia principalmente a mãe de quem o provocava.

Naquela tnanceiro como arde de 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, toda a população se preparava para a procissão. Padre Herculano, entusiasmado tanto com o sucesso fio espiritual da festa, organizava tudo:

– O Licurgo vai à frente com o Crucifixo, abrindo a procissão. Do lado direito, os “senhores homens” seguirão o Luiz Rocha e as “senhoras mulheres” o Geraldo do Embiruçu que levarão as respectivas lanternas.

E o cortejo, precedido pelo Zé Guizo que a cada três minutos soltava um foguete de vara, começava a se movimentar e a tomar forma.

– Agora sai o andor de São Sebastião e, logo depois, no centro das alas do Apostolado, o estandarte e a imagem do Sagrado Coração de Jesus – ordenava o sacerdote.

Organizados pela Maria do Vito e a Rosa, os anjinhos com asas multicoloridas e alguns até sem elas, iam à frente das Filhas de Maria e dos Congregados Marianos que faziam a guarda de honra à imagem de Nossa Senhora, com seu manto azul esmagando a serpente com os pés descalços e que era conduzida no seu andor ornamentado com flores de papel crepom, fitando com seu olhar misericordioso os milhares de fiéis.

Itinerário costumeiro, saindo  da Matriz, descendo ao lado da casa paroquial, passando em frente da fábrica de manteiga, seguindo a rua do Asilo e atingindo a hoje Av. Antônio Cândido até a Praça Coronel Caetano, onde margeava a Prefeitura, desfazendo-se no ponto onde fora iniciada.

Encerrando o piedoso ato, vinha o Coral “Padre Augusto Horta”, onde a Doninha e a Nhazinha ditavam o tom e o compasso dos mais variados hinos sacros em homenagem à Mãe de Deus, revezando seus cânticos com a execução de entusiásticos dobrados pela “Lira Espírito Santo”, solados pelas clarinetas do Nenê, do Licínio e do Nemésio, reforçadas nesse dia pelos trombones do Zebedeu e do Constantino, lá do Cedro. Ditando o ritmo das músicas, o Deusdedit, o Juvenal, o Raimundo e o Dozinho Marinho, marcavam o andamento com seus saxs, o Zé Barbeiro fazia o contra-canto ao bombardino e o Portápio, com a tuba, orientava a percussão com o Vitinho no tarol, o Lobo na caixa surda, o Alfredo Preto no bombo e, no final da banda e da procissão, o Lausico, nos pratos.

Em frente ao bar do Zezico, o Coral encerrara um popularíssimo cântico, cujos últimos versos eram um louvor ao Santíssimo Sacramento:

“Louvemos a Deus para sempre. Amém”.

Antes que a Lira iniciasse o dobrado “Cisne Branco”, o Anão, do interior do bar, pela fresta da porta semicerrada, para provocar o Lausico, gritou:

– Ei, Colete Preto!

No silêncio da contrição geral, mas reagindo ao atrevimento do insulto, cego de raiva e sem medir as conseqüências de suas palavras, o Lausico, no mesmo ritmo e tonalidade muito superior à da música que acabara de ser cantada, respondeu com todas as forças de seus pulmões:

“Colete Preto é a p.q.p.”

Constrangimento generalizado. O Portápio deixou escapulir das mãos a partitura e ao se abaixar para apanhá-la, atingiu a cabeça do Dozinho com a boca da tuba, atirando-o contra o Licínio, que teve desalinhados os poucos e estratégicos fios de cabelos que camuflavam sua repudiada calvície.

Ao virar-se para observar o tumulto na banda, o Zé do Dino que custava a suportar uma dos quatro varais do andor, tropeçou numa pedra, arqueou os joelhos e quase a imagem de Nossa Senhora foi ao chão.

O Lausico, impassível, mas avaliando a reação que suas palavras haviam causado, apertou os pratos contra o peito e baixinho segredou aos ouvidos do Alfredo Preto ao seu lado:

– Um dia ainda enforco o desgraçado desse Anão!

Só voltou a tocar na banda alguns anos depois. Assim mesmo somente em retretas no coreto e nos circos de tourada e cavalinho que visitavam a cidade.

De procissões, foi sumariamente excluído!