OUTROS "CAUSOS"

JOÃO-NINGUÉM

 

E aí o negão disse ao oficial do Registro Civil:

– Vim registrar meu filho que nasceu ontem.

– Nome?

– João. Homenagem ao avô.

E, devido à escolha de meu pai, juntei-me a todos os Joãos do mundo, trazendo também comigo uma reluzente aura de azar e frustrações.

– Mas João é nome bíblico, de papas, de reis e de presidentes. Por quê tanta aversão a ele?

– Não é aversão. É pura constatação. Há as exceções, lógico, mas tenho observado que os Joãos, mais que pessoas com outros nomes, são alvo do que há de mais negativo e infeliz na vida.

– Não é tanto assim não...

– Veja, por exemplo, o meu caso. Minha mãe, de tanto desgosto pelo nome que o pai me dera, adoeceu e não sobreviveu mais que um ano após o parto. Como represália, nem uma simples foto deixou. Virei um João sem-mãe e até sem-foto-da-mãe. Aí tiveram que substituir a minha genitora pela avó e pela tia. Não faltaram carinho e amor, mas ninguém mais me agraciou com os “bonitinho”, “fofinho”, “engraçadinho”, “gordinho”, “cara do pai” e outros elogios que só as mães fazem, mesmo em se tratando de uma anta, um Frankstein como eu. Angustiado, também meu pai morreu quando eu tinha 12 anos. Virei um João sem-pai também.

– Mas João, você cresceu e, com você, a cidade. Deve ter participado de fatos marcantes de seu desenvolvimento...

– Participei, não. Assisti à margem. Fui testemunha de acontecimentos marcantes e que a geração atual, por certo, há de avaliar e dar a merecida importância numa cidade de apenas dois ou três mil habitantes à época.

Vi, por exemplo, o velho Olímpio Moreira chegar diariamente, montado em seu cavalo, sob um desbotado guarda-sol, para dar expediente na Prefeitura onde, sem câmaras e tribunais fiscalizadores, exercia, com toda probidade e eficiência, o cargo de dirigente máximo do município que ainda abrangia os distritos de Araçá e Cordisburgo. Assisti recital de Mercês Maria Moreira, num Teatro Municipal em ruínas, interpretando Carlos Gomes, acompanhada somente pelo violão do Vicente Rocha. Um show inesquecível. Nunca vi outro igual... Testemunhei o pranto de toda uma cidade com a morte do Padre Augusto e a alegria da população pela chegada do Padre Herculano. Vi chegarem os primeiros cabos da Companhia Telefônica em direção a Curvelo, os ônibus dos Irmãos Tolentino – os Bandeirantes – rumo ao sertão e o “Doloroso” desafiar e vencer todo um destacamento policial na base da capoeira e do “rabo de arraia” em determinada Festa do Divino.

Acocorado sobre um barranco, assisti no velho e empoierado campo do Paraopeba a exibição de quase metade do Clube Atlético Mineiro e da seleção estadual de futebol – Murilo, Mexicano, Zé do Monte e Barros – ao lado do Dilton e do Zezinho, campeões pelo Democrata de Sete Lagoas e do Quileu, Miranda, Otávio, Tucaia e Neves, golear o time de Cordisburgo em jogo interrompido logo aos 25 minutos provocado por estúpida e covarde agressão aos visitantes pela torcida local. Era um estádio inteiro contra onze pessoas...

Entre várias outras recordações que tenho dos tempos de juventude, lembro-me, por exemplo, do sorriso largo e feliz do “seu” Nenê quando recebia cumprimentos pelo aniversário de sua “Gazeta de Paraopeba” nos dias 9 de abril; a festa da queima do Judas, todo sábado da aleluia, na Praça da Matriz, com leitura de testamento e liberação de animais recolhidos pela madrugada e circulados por carroças e carros de boi; o Circo Brandão onde, ao crepúsculo de um dia ensolarado de setembro, a música alemã “Barril de Chopp” foi levada aos ares por um conjunto de possantes caixas acústicas presas aos mastros de sustentação da lona. Eu não conhecia o sistema e parecia que o som vinha do céu...

– E escola, namoradinhas e outros Joãos da cidade?

– Depois de freqüentar escola rural, fui matriculado no 4º ano do “Afonso Pena”. Sala de Dª Anésia, professora enérgica e competente. Localização na sala de aula: última carteira da última fila... Eu e o João Maurício. Tive três namoradinhas. As meninas não sabiam e muito menos seus pais. Só eu, platonicamente. Já imaginou a reação dos Zés, Antônios e Eugênios da vida contra mim, feio, pobre e capiau se descobrissem alguma intenção de minha parte em aproximar-me de suas filhas? Nem é bom pensar... Lembro-me bem de cinco xarás em Paraopeba: o João Pio, comerciante e delegado de polícia respeitado, o João Quilu, o Joãozinho do Dino, o João Garrote, tipo popular muito querido e o João Joaquim de Figueiredo. Este, para se livrar do incômodo João e apesar da aparência anglo-saxônica, adotou o apelido de Negrão e, com ele, tem se dado muito bem. Se continuasse como João...

Para marcar bem, basta dizer que em Paraopeba nunca houve um prefeito com o nome João. Se não me falha a memória, nem vereador. Sabino, Olímpio, Francisco, Guilherme, Bernardo, Nelson, Luciano, Napoleão e outros. Alguns foram eleitos mais de uma vez. Zés, houve 4: Preto, Dalle, Campolina (em dobradinha com outro Zé, o Teófilo) e o último, antevendo a volta, tem o Zé duplicado.

Você já ouviu falar no João Guimarães? Claro que não. Mas o Guimarães Rosa todos conhecem e admiram. Se o escritor de Cordisburgo continuasse com o João, não seria conhecido nem em Lagoa Bonita...

E os Joãos bíblicos, internacionais e nacionais? Metade dos Joãos do Novo Testamento foi decapitada. Dos últimos papas com o nome João, somente o XXIII teve menos atribulações. O João Paulo I morreu em circunstâncias misteriosas a menos de 40 dias da posse. O atual, João Paulo II, apesar do respeito e veneração que todos lhe dedicam, foi vítima até de atentado a bala. Nos Estados Unidos, o Kennedy teve aquele trágico fim; na Argentina, o Peron que era dirigido pela Evita, saiu corrido pelo militares e depois voltou. Dizem que com um belo par de chifres colocado pela Isabelita. Na Espanha, o João Carlos reina sobre um país que os bascos, catalães e galegos teimam em esfacelar. Por aqui aportou no início de nossa história o D. João VI, corrido da Europa pelas tropas de Napoleão Bonaparte e, como presidentes, houve três recentemente: o Goulart (que inutilmente tentou se esquivar como Jango), o Café Filho (que também era João) literalmente escorraçados por militares e o outro, o Figueiredo que apreciava mais o cheiro de cavalo do que o do povo... É muita infelicidade... Tenho certeza de que se não se chamassem João, o rumo da história seria completamente diferente.

– Coincidências somente, nada mais.

– Esse nome sempre foi sinônimo da mais pura frustração, como na conhecida história do João Estrume que perguntado pelo Juiz, na audiência processual de troca de identidade sobre como gostaria de ser chamado, respondeu triunfante:

– Izé, excelência. Izé Estrume...

– Essa sua ogeriza aos Joãos não se justifica. Afinal, você também é um deles...

– Infelizmente venho arrastando comigo esse nome e tenho minhas razões para dizer que, via de regra, ele dá muito azar. Um João, porém, por afinidade eu acompanho há tempos: o João, marcador do Garrincha. Sou, como ele, um completo João. Incapaz, inútil, incompetente, ineficiente, imprestável, invisível. Uma exata figura de retórica. Um elemento que somente existe para deleite e escárnio dos melhores dotados. Afinal, eu e o João do Garrincha somos os mais perfeitos e acabados Joãos-Ninguém do Brasil...