OUTROS "CAUSOS"

O DISCO VOADOR CABOCLO

 

A veracidade da luz que aparecia no alto do Cruzeiro, nos cerrados da Vargem do Lobo ou no Morro das Cruzinhas era sempre discutida.

De acordo com alguns, ela aparecia ora arredondada, amarela e com uma projeção lateral, ora de coloração esverdeada, de forma cônica, apoiada em um pedestal vermelho, fazendo evoluções em todas as direções, subindo e descendo morros e vales com incrível rapidez. A luminosidade que possuía era muito possante, clareando vasta região à sua volta. Às vezes, estacionava por alguns segundos sobre a copa de uma árvore ou mesmo ao nível de alguma estrada, junto ao chão. Sob qualquer forma era aterradora a sua imagem.

Mas havia os que, além de negarem a existência da famosa luz, zombavam dos que afirmavam que a tinham visto:

– Essa luz só está na cabeça de algum demente ou cachaceiro, depois de algumas pingas mal tomadas. Se aparecer para mim, vou até acender o cigarro nela...

Entre estes estavam o Vicente, o Inhô e o Ci, filhos do Buré, morador nas propriedades do Antonino da Rocha na Vargem do Paga Bem. Do outro lado do cerrado, mas nas terras do Alcides Cunha, vivia o Joaquim Cara-Ruim (*). Todos os quatro, além de não acreditarem na luz, tinham uma afinidade muito grande: eram vidrados numa caçada de tatu. Os filhos do Buré caçavam juntos, sempre acompanhados por uma cadela de pequeno porte, a Tirica, e o Joaquim preferia sair sozinho, acompanhado somente do seu cãozinho, o Avião. Os cachorros, bem treinados, eram capazes de farejar tatus a razoáveis distâncias e desentocá-los com maestria, propiciando aos caçadores condições para a perseguição e abate da caça.

Determinada tarde, depois de uma chuva forte, houve uma revoada de tanajuras e todo bom caçador sabe que elas são o petisco preferido do tatu.

De um lado do cerrado saíram, pelas 7 horas da noite, acompanhados da Tirica, o Vicente, o Inhô e o Ci. Do outro, o Joaquim, com o seu Avião. Tomaram os caçadores a mesma direção: o cerrado do Morro das Cruzinhas. De vegetação rasteira, terreno acidentado, o local era cortado pelo Ribeirão do Paracatu, córrego que corria vagarosamente protegido em suas margens por barrancos altos e que necessitava de pinguela para a travessia. De um dos lados do córrego, depois de uma curva fechada margeada por uma cava alta, havia um bambuzal cujos ramos pendentes sobre a trilha, dificultavam a passagem. Formavam uma espécie de túnel e as poucas pessoas que por ali passavam eram obrigadas a se abaixar para se proteger dos ramos que cruzavam o caminho.

Apesar da ocasião parecer boa, a caçada foi um fracasso. Nenhum tatu fora farejado nem pela Tirica nem pelo Avião. Noite já alta, resolveram os caçadores retornar às suas casas. No ponto em que se encontravam, e como a trilha e a pinguela eram as únicas por ali, haveria o cruzamento natural deles.

O Vicente, o Inhô e o Ci, este carregando a Tirica presa pelas patas sobre o pescoço, a fim de dar um descanso à cadelinha, atravessaram a pinguela e se preparavam para sair da curva e passar pelo bambuzal.

Em sentido contrário, vinha o Joaquim Cara-Ruim. Mais equipado ou por não enxergar muito bem, além de ligeira deficiência auditiva, ele possuía um lampião para serventia nas caçadas. Quando chegou ao bambuzal, o Joaquim sentiu um reboliço na barriga e teve necessidade de ir até atrás de uma moita. A demora seria pequena e, por isso, conservara aceso o lampião, dependurando-o em um dos galhos de bambu que cruzava a trilha. Logo atrás, Avião deitou-se com as patinhas para frente, cabeça em pé, pronto para qualquer eventualidade.

Ao saírem da curva em direção ao bambuzal, os três irmãos depararam com aquela luz, logo à frente, elevada a poucos metros do solo, balançando-se ao sabor da brisa. A claridade proporcionada pela tênue chama do lampião tomava proporções gigantescas, tanto pelo ambiente fechado do bambuzal como, principalmente, pelo medo que repentinamente se apossou dos caçadores. Não deu outra. O Ci, jogou a cachorrinha para o alto e o Inhô, que vinha na retaguarda, já quase sem forças, disse para os outros dois:

– Nós num aquerditava na luz não, mas óia ela aí, pessoá!

E, assim dizendo, deu meia volta e disparou. Acontece que os outros dois tiveram a mesma reação e entraram todos ao mesmo tempo na pinguela. Foi uma trombada de estremecer! Resultado: os três no fundo do riacho que estava com o nível das águas um pouco alterado pelas chuvas da tarde!

Assustado com a corrida do Avião, o Joaquim Cara-Ruim ergueu-se, se recompôs, pegou o lampião e, para tentar enxergar melhor, levantou-o sobre a cabeça, dobrando a curva e parando sobre a pinguela à procura do cachorro. O Avião tinha mesmo é ido atrás da Tirica, que atravessara a pinguela e, numa correria louca, tentava voltar para casa.

O facho de luz não permitia aos irmãos, no fundo do córrego, distinguir a figura do Joaquim lá no alto, segurando o lampião e gritando pelo cachorro:

– Vião, Vião, Vião! Vem cá, Vião!

Agarrado aos ramos da margem, tremendo de frio e de medo, tentando num esforço frenético voltar à terra firme para se safar da situação, o Vicente ainda teve forças de dizer para o Ci:

– Bem qui eu tinha duda da luz. Agora nós tá veno que num é mintira não. Ainda pru riba, fiquemo sabeno que ela anda mesmo é de aeroplano. Num tá veno ela gritá vião, vião. É prela entrá nele, se escafedê daqui e assustá nôtro lugá!

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(*) Como os personagens e ambientação da narrativa são reais, queremos esclarecer que o cognome ‘‘Cara-Ruim’’ como era conhecido o Joaquim era devido ao seu semblante sempre carrancudo e não ao conceito atual de ‘‘cara’’ como pessoa, indivíduo etc.