Por ser o mais baixinho, eu era o encarregado de transportar o caixote e fiscalizar o movimento da rua, enquanto o Pé de Chumbo e o Zé Cocão penetravam no quintal da residência de D. Cirilo para colher deliciosas uvas que o piedoso bispo cultivava para fabricar o vinho que usava em suas missas.
A bem da verdade, eu não tinha mesmo era coragem de ultrapassar a cerca de achas de aroeira que cercava a plantação, pois tinha conhecimento que, patrulhando a propriedade, havia três cachorros que, ao menor sinal de movimentação, se alvoroçavam e defendiam-na das invasões principalmente dos mininos da tipografia, como a Venância, serviçal da residência do Nenê, tratava os gráficos da Gazeta de Paraopeba.
Naquela noite a colheita foi satisfatória. À saída, quando os dois se preparavam para deixar o local, o Zé Cocão inadvertidamente tropeçou em uma lata, despertando os cães que dormiam a poucos metros. Dois deles começaram a ladrar, sem contudo saírem de onde estavam. O outro, o peludo e pequenino Japi, que preferia trabalhar em silêncio, pegou o Pé de Chumbo pela retaguarda quando ele se curvara para levantar o caixote cheio de uvas. Erguendo-se assustado com o ataque, trouxe dependurado na retaguarda o cachorro que embaraçara seus pontiagudos dentes no tecido da velha e surrada calça que usava quando em trabalho nas oficinas, fazendo com que fosse rompido o frágil barbante que a sustentava à cintura, descendo-a até os joelhos. No apavoramento da fuga, mas com os movimentos tolhidos, o Pé de Chumbo caiu de bruços, dando ao Japi a oportunidade de cravar-lhe várias dentadas no traseiro nu, cada uma seguida de angustiantes gemidos e abafados pedidos de socorro.
Devidamente espantado o Japi, eu e o Zé Cocão socorremos o Pé de Chumbo e acionamos o Nemésio Madalena, que residia em um quarto nos fundos da farmácia do Otávio Silva, para que ele fizesse os curativos na parte atingida. Entre sonolento e irritado, depois de examinar a natureza e o local dos ferimentos, perguntou matreiramente o enfermeiro:
Que foi isso, Pé de Chumbo? O aperto foi tão angustiante que você não notou a presença do ouriço-cacheiro atrás da moita ou você decidiu testar a rigidez dos grampos de algum rolo de arame farpado, ralando-os com essa parte do corpo? Ferimento em lugar mais esquisito, sô!... Nunca vi disso não, uai!...
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Acocorado atrás de uma das bandeiras da porta do cômodo das oficinas da "Gazeta", eu era o encarregado de acionar o barbante que passava pela fresta da dobradiça e tinha na outra extremidade uma laçada circulando grãos de milho, na complicada operação de pegar um dos frangos da vizinha Dª Maria Edmundo, que seria sacrificado para a nossa ceia. À minha retaguarda, com um saco vazio às mãos, o Zé Cocão executaria a operação abafa, evitando que o bater de asas da ave chamasse a atenção de alguém que passasse pela rua no momento. Do lado contrário, observando pela fresta da outra bandeira da porta, postava-se o Zé Leitão que, com a mão direita levantada, daria o devido sinal para a deflagração da operação, pois da minha posição era impossível visualizar a armadilha.
Silêncio absoluto, tensão à flor da pele e eis que aparece um frango, catando aqui e ali a "carreirinha" de milho que o levaria à cilada fatal. Zé Leitão abaixou a mão, o barbante foi acionado e laçada a canela da perna direita do Nenê que, como fazia sempre, usando chinelos com solado de borracha, se encaminhava silenciosamente à oficina para flagar o pessoal em possíveis brincadeiras ou mesmo fumando, o que ele não admitia.
Apoiando-se com uma das mãos na grade que separava a porta do recinto da oficina, com a outra, pacientemente, Nenê soltou-se da laçada e, com o semblante carregado, fitou-nos decepcionado, iniciando a merecida descompostura, encerrando-a com a ameaça de comunicação aos familiares das nossas atitudes.
Dirigindo-se especificamente ao Zé Leitão, censurou irritado:
Até você, Zé Geraldo, ajudando a pegar aves de sua avó e fazendo coro com os colegas de que seriam gambás os responsáveis pelos prejuízos, conforme comentários dela com a Venância em várias outras oportunidades... Quero que estas oficinas continuem a ser uma escola de cidadãos e não de marginais como vocês acabam de tentar demonstrar com esse ato. Francamente, não dá para acreditar...
Indignado, voltou para a redação e, daí a pouco, mandou a Augusta chamar o Pé de Chumbo, que era naturalmente o chefe da oficina, tanto pela sua idade mais alta como também pelos seus maiores conhecimentos profissionais.
Mais bronca, comentou o Zé Cocão.
A culpa não foi minha. O Zé Leitão deu o sinal e eu puxei o barbante justifiquei preocupado.
Eu abaixei a mão foi de susto quando vi o pé do Nenê dentro do laço. Me confundi todo pois queria mesmo era me embalar e saltar a grade para o interior da oficina... Você é que não entendeu...
Daí a pouco, voltou o Pé de Chumbo:
Nenê não abre mão dos conceitos de moral que vocês têm que seguir e não admite que se repita ataques a bens alheios, principalmente aos frangos de Dª Maria Edmundo. Mas, por outro lado, ele tá morrendo de rir da trapalhada que vocês aprontaram... E para que fique demonstrada sua compreensão, mandou esta moeda de dois mil réis, determinando que alguém vá à casa do Bertolino comprar um frango para a ceia. E, mais ainda, mandou dizer que também quer participar e que seja reservada uma coxa bem cozidinha pra ele...
Assim era o Nenê! Afável, amigo de todos. Coração maior que o corpo. Mas que apreciava intensamente uma traquinagem, não tenho a menor dúvida.