OUTROS "CAUSOS"

UM DEFUNTO MUITO VIVO

 

– Eu quero qui seu pai seje interrado num daqueles caxão bunito, invernizado, com arça marela e desenhado cuns devorteio paricido cum ramo de flô de fejão desenhado na tampa, qui nem foi o do cumpade Coroné Grigoro, seu padrinho de batismo – exigiu a chorosa viúva Dª Marieta ao filho mais velho, debruçada sobre o corpo inerte do Juca da Rosa, falecido poucas horas antes.

– A sinhora sabe qui só in Cordisburgo é qui tem um marcinero que sabe fazê daqueles caxão. Eu vô cunversá cum o Olavo, gerente da fábrica de mantega, e se ele autorizá o transporte no caminhão qui amanhã vai buscá creme nas fazenda da rigião eu passo um telegrama pro Mané Fuinha, ele manda a incumenda e a vontade da sinhora será sastifeita.

– Faz isso pur mim, meu fio. Num quero qui seu pai seje interrado naqueles caxão fraco cuberto de pano roxo com franja amarela e qui nas premera pazada o falicido recebe a terra toda in riba da cara. O Juca num merece isso!

No trajeto de volta, o caminhão trazia na carroceria além dos latões vazios para a troca pelos que continham o creme para a fábrica de manteiga, a urna amarrada a uma tábua da carroceria, autorizado que fora o transporte pelo Olavo.

Na parada da Fazenda da Onça, estava o Chico Mulambo, andarilho de origem nordestina e que tinha o hábito de trazer consigo um gato preto dentro de uma bolsa de pano dependurada no ombro e que observava o ambiente somente com a cabeça de fora.

– Ô sô minino, o sinhô pode me levá inté Paraopeba? – perguntou ele ao Ulisses, motorista do caminhão.

– Trepa logo e agarra bem nas tauba da carroceria pra num cumpricá a minha vida com um tombo daí de riba.

Na região do Morro do Chapéu, nas proximidades da Fazenda do Saco da Pedra, começou a chover, piorando ainda mais as condições da horrível estrada. Para proteger-se do mau tempo, o Chico arredou a tampa, acomodou-se como pode dentro da urna e colocou o gato em uma vaguinha a seu lado. Com alguma dificuldade encaixou novamente a tampa e prosseguiu-se a viagem.

Na ponto da Fazenda do Quilombo, o Zé Preto, carregando seis frangos presos pelos pés a uma mangüara e que seriam comercializados e fazer caixa para as despesas do dia, a Virgília e a Maria Grossinha, também estavam à espera da carona e foram autorizados a entrar no caminhão.

– Trepa logo, qui já tô atrasado e faz companhia pro baiano qui já tá aí in riba, ordenou o Ulisses.

Ao se depararem com a urna e notando a ausência da outra pessoa, os três já começaram a ficar apavorados e concluíram que o companheiro de viagem era um defunto. Escoraram-se na parte traseira da carroceria, o mais longe possível do caixão, posicionando-se a Virgília, a mais supersticiosa, no meio dos outros dois.

Em uma subida mais forte, já nas proximidades do fim da viagem, a corda que prendia a urna junto às latas de creme arrebentou-se e ela veio deslizando, atingindo a canela do Zé Preto que encolheu-se todo e fez rápido o sinal da cruz.

– Sarve nois, groriosa Santa Rita de Cassa! – balbuciou a Maria Grossinha, protegendo-se ainda mais junto à Virgília.

O Chico Mulambo, que notara a presença dos companheiros de viagem, suspendeu a tampa da urna e colocou a mão espalmada para fora em atitude característica de avaliação do tempo, perguntando em voz arrastada:

– A chuva já passô, sô minino?

Num gesto instintivo de defesa a Virgília soltou as mãos da tábua da carroceria e tentando proteger-se, agarrou-se aos dois companheiros, desequilibrando-se todos e estatelando-se na lama atrás do caminhão.

O motorista, sem notar o que houvera acontecido, seguiu viagem. Chegando ao destino, encostou o caminhão na plataforma e o Vicente Lacerda, encarregado da parte operacional da fábrica, deu a ordem:

– O Nô e o Chopin qui chegô agora da viage vai armuçá e um dos dois passa na casa do Juca da Rosa e avisa pra viúva que a encomenda dela chegô. O Adelino e o Catita vai providenciá a discarga dos latão de creme. Tira premero a urna com todo cuidado pra num istragá ela.

Os dois já não gostaram muito da conversa de urna e já ressabiados subiram na carroceria do caminhão para a descarga.

– Adelino, pega na parte mais larga do caxão e discansa ele na carroceria. Eu siguro nas arça dos pé e nois rabeia esse troço pra prataforma, ordenou o Catita.

– Sempre eu com o mais pesado, né murcegão? Pruquê nois num inverte?

– Cala a boca e vamo discarregá logo o caminhão qui a chuva tá cum jeito de apertá!

Quando os dois pegavam as alças da urna para o respectivo manuseio, o Chico Mulambo acordou, arredou a tampa, assentou-se e perguntou com o ar mais inocente do mundo:

– Nois já chegô, sô minino?

O Catita, deduzindo que era um cadáver que se levantava, saltou a grade da carroceria, atravessou o pátio em desabalada carreira e escondeu-se sob o balcão do armazém do Chico Piculista, do outro lado da rua. Assustado com o grito de socorro do Catita, o gato também tratou de se escapar e, todo arrepiado, refugiou-se sob o caminhão.

A rota mais conveniente da fuga do Adelino era pela parte lateral da carroceria e, alcançando a plataforma, entrou esbaforido na sala onde o Olavo atendia a um fazendeiro e foi logo suplicando:

– Sô Olavo, pelo amor de Deus! Chama o padre, o delegado, os sordado pra sarvá nois. O difunto qui veio no caminhão tá vivo mais o esprito dele sartô do corpo e introu dibaixo do caminhão! É do jeito e do tamanho de uma onça e preto qui nem carvão! Sarva nois, sô Olavo!

O Olavo levantou-se intrigado da cadeira e chegando até a porta ainda pode ver o Chico Mulambo saindo debaixo do caminhão acariciando o seu gato e dizendo-lhe com ternura:

– Pessoá isquisito desse lugá, bichano! Apronta uma zuera danada só pruquê nois dois acordemo, levantemo e eu pirguntei se tava na hora de apiá! Tá todo mundo doido, ô xente!...