OUTROS "CAUSOS"

ET COM BAFO DE ONÇA

 

Zé Silveira, morador do Cedro e que devido a proibição do comércio de bebidas pela CCC (*), vinha quase que diariamente tomar umas pingas nos botecos de Paraopeba. Seu ponto preferido era o bar do Galdino do Eliezer que ficava situado na região onde é hoje o Parque de Exposições, junto à estrada de carros de bois que unia os dois lugares.

Era um pinguço do tipo inofensivo. Não brigava, não babava, não falava palavrões e não pedia nada a ninguém. Chegava no bar pedia uma dose, sentava-se em um caixote e lá ficava horas a fio, renovando periodicamente o estoque.

O Zé Silveira gostava era de cantar. Depois da terceira dose, tirava do bolso uma gaitinha, executava uma introdução sem nexo e em tom moderado intercalava sempre a mesma canção:

É o bicho caxinguelê,
Ele trepa pro pau arriba,
Ele desce pro pau abaixo,
Ele corta cipó co’a mão,
Ele pula do pau no chão...

Tatu subiu no pau,
Foi cumê uma mumbuca,
Lagartixa chegou dibaixo,
Calango cê cai daí e machuca...

Sô Gardino é home bão,
Dá nós cachaça dado,
Ele veio lá de Sampaulo,
Foi isbarrá lá no Rasgão...

Era como um agradecimento ao tratamento cordial que sempre lhe dispensara o proprietário do bar que o tratava com alguma atenção, tanto pela sua idade um pouco avançada como pelo seu comportamento cordato e pacífico.

Entre três e quatro horas da tarde o Zé Silveira levantava-se do caixote, pagava a despesa e, cambaleante, tomava o caminho de casa, revezando os acordes da inseparável gaitinha com a poesia de sua canção preferida.

Uma tarde houve grande tempestade, o Córrego do Cedro transbordou e a ponte, passagem obrigatória para pedestres e veículos, foi destruída. Só ficaram as duas vigas de madeira que com o rápido baixar das águas serviam de pingüela para a travessia dos transeuntes.

Zé Silveira tinha que passar e apesar de aconselhado a desistir da idéia, firmou o corpo, respirou fundo e deu os primeiros passos em direção ao lado contrário. No meio do trajeto, a vista escureceu, as pernas bambearam e na ânsia do reequilíbrio, abriu os braços e a gaita que trazia na mão direita, escapuliu e caiu no leito do córrego, àquela altura com o volume de água quase normal.

Ele não queria perder seu instrumento. E não teve dúvidas: literalmente desabou da viga, desceu como um bólido os dois metros de altura e afundou lá em baixo nas águas barrentas. Como a profundidade era pouca e a correnteza praticamente nenhuma, emergiu com água pelo tórax, reequilibrou-se, deu dois passos em direção à margem e conseguiu agarrar a gaitinha que boiava à sua frente, presa num ramo de bambu.

Alívio geral e problema à vista: como tirar o bêbado do leito do córrego? Enquanto os circunstantes discutiam a melhor forma, houve uma descarga da tinturaria da fábrica de tecidos, a poucos metros a montante, transformando a cor das águas em um verde escuro, com forte odor de anilina, subindo o seu nível e cobrindo o Zé Silveira que emergiu segundos após com a cabeça e face devidamente coloridas pela ação da tinta.

Zé Poeta, o mais expedito dos curiosos, correu ao armazém do Cristiano, pegou uma corda de cânhamo, amarrou uma ponta no eixo no automóvel do Zito, estacionado à margem, desceu por ela até o leito do córrego e amarrou o Zé Silveira pelo tronco. Lá de baixo, deu a ordem:

– Ô Zito, liga o carro, mete uma primeira e saia bem devagarinho!

Estava salvo o Zé Silveira! Sofrera somente alguns arranhões, perdera o chapéu e o pé direito da botina. Devidamente desamarrado, levou a gaitinha enxarcada aos lábios, soprou-a e ela não funcionou.

– Tem duda não. Amanhã ela tá seca e vorta a sê cumo era iantes. O que num pudia é eu perdê ela. Quase qui morro, mais ela tá aqui, oh!

E, triunfalmente, todo colorido de verde como um ET do futuro, começou a subir a rua em direção à sua casa, entoando a música preferida:

Tatu subiu no pau,
Foi cumê uma mumbuca...

Grande Zé Silveira! Já não existem mais pinguços da sua classe e categoria!

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(*) CCC - Companhia Cedro e Cachoeira, tecelegam.