Zé Silveira, morador do Cedro e que devido a proibição do comércio de bebidas pela CCC (*), vinha quase que diariamente tomar umas pingas nos botecos de Paraopeba. Seu ponto preferido era o bar do Galdino do Eliezer que ficava situado na região onde é hoje o Parque de Exposições, junto à estrada de carros de bois que unia os dois lugares.
Era um pinguço do tipo inofensivo. Não brigava, não babava, não falava palavrões e não pedia nada a ninguém. Chegava no bar pedia uma dose, sentava-se em um caixote e lá ficava horas a fio, renovando periodicamente o estoque.
O Zé Silveira gostava era de cantar. Depois da terceira dose, tirava do bolso uma gaitinha, executava uma introdução sem nexo e em tom moderado intercalava sempre a mesma canção:
Era como um agradecimento ao tratamento cordial que sempre lhe dispensara o proprietário do bar que o tratava com alguma atenção, tanto pela sua idade um pouco avançada como pelo seu comportamento cordato e pacífico.
Entre três e quatro horas da tarde o Zé Silveira levantava-se do caixote, pagava a despesa e, cambaleante, tomava o caminho de casa, revezando os acordes da inseparável gaitinha com a poesia de sua canção preferida.
Uma tarde houve grande tempestade, o Córrego do Cedro transbordou e a ponte, passagem obrigatória para pedestres e veículos, foi destruída. Só ficaram as duas vigas de madeira que com o rápido baixar das águas serviam de pingüela para a travessia dos transeuntes.
Zé Silveira tinha que passar e apesar de aconselhado a desistir da idéia, firmou o corpo, respirou fundo e deu os primeiros passos em direção ao lado contrário. No meio do trajeto, a vista escureceu, as pernas bambearam e na ânsia do reequilíbrio, abriu os braços e a gaita que trazia na mão direita, escapuliu e caiu no leito do córrego, àquela altura com o volume de água quase normal.
Ele não queria perder seu instrumento. E não teve dúvidas: literalmente desabou da viga, desceu como um bólido os dois metros de altura e afundou lá em baixo nas águas barrentas. Como a profundidade era pouca e a correnteza praticamente nenhuma, emergiu com água pelo tórax, reequilibrou-se, deu dois passos em direção à margem e conseguiu agarrar a gaitinha que boiava à sua frente, presa num ramo de bambu.
Alívio geral e problema à vista: como tirar o bêbado do leito do córrego? Enquanto os circunstantes discutiam a melhor forma, houve uma descarga da tinturaria da fábrica de tecidos, a poucos metros a montante, transformando a cor das águas em um verde escuro, com forte odor de anilina, subindo o seu nível e cobrindo o Zé Silveira que emergiu segundos após com a cabeça e face devidamente coloridas pela ação da tinta.
Zé Poeta, o mais expedito dos curiosos, correu ao armazém do Cristiano, pegou uma corda de cânhamo, amarrou uma ponta no eixo no automóvel do Zito, estacionado à margem, desceu por ela até o leito do córrego e amarrou o Zé Silveira pelo tronco. Lá de baixo, deu a ordem:
Ô Zito, liga o carro, mete uma primeira e saia bem devagarinho!
Estava salvo o Zé Silveira! Sofrera somente alguns arranhões, perdera o chapéu e o pé direito da botina. Devidamente desamarrado, levou a gaitinha enxarcada aos lábios, soprou-a e ela não funcionou.
Tem duda não. Amanhã ela tá seca e vorta a sê cumo era iantes. O que num pudia é eu perdê ela. Quase qui morro, mais ela tá aqui, oh!
E, triunfalmente, todo colorido de verde como um ET do futuro, começou a subir a rua em direção à sua casa, entoando a música preferida: