OUTROS "CAUSOS"

SAFADEZA À SOMBRA DO JACARÉ

 

– Oia, Chico, eu te aconseio a num pescá mais na lagoa da Maria Bernada. Istrudia, quando eu passava  lá na cabecera dela, um jacaré travessô na minha frente, tafuiô nas água e foi nadano lá pros lado das tabúa onde ocê vai fisgá as traíra.

Este conselho foi dado pelo Zé Candinha ao Chico Preto, quando se encontraram uma tarde na casa do Raimundo Bigode, lá na Vargem do Paga-Bem.

A lagoa tinha esse nome porque ficava a poucos metros da casa de Dª Maria Bernarda, nos terrenos do Alcides Cunha, e que era um reservatório de águas pluviais utilizado pelos animais na ocasião da seca, tendo-se em vista a falta de córregos ou rios na região.

– Ocê tava é com a cara cheia de canjibrina e o que passô na sua frente deve ter sido um calango qui os seus oio aumentô de tamanho. Ocê num deve nem sabê o qui é um jacaré... – retrucou incrédulo o Chico.

– De verdade, eu só tinha visto um nas gravura dos livro da iscola, mas sei que é um bicho muito brabo.  Quando pega arguma coisa leva ela pru fundo e come tudo, num sobrano nada do abocanhado. O qui eu vi tinha uns dois metros de tamanho e uma boca de mais de quatro parmo, com os dente apareceno dos lado.

Ignorando o conselho do Zé Candinha, dias depois o Chico Preto foi até a bananeira, arrancou algumas minhocas, pegou a vara e disse para a Virgília, sua mulher:

– Eu vô lá na lagoa da Maria Bernada pescá umas traíra. Num vô demorá não pois já é mais de duas hora e até as quatro eu tô aqui pra jantá.

– Cuidado com o jacaré, home... O Zé Candinha pode tá falano a verdade...

– Qui nada, Virgila. Esse bicho eu pego é no tapa. Jacaré do Zé Candinha tá é arroiado dentro de uma garrafa de pinga, muié...

Com água à altura dos joelhos, sem camisa, o Chico Preto, estático, segurava a vara com a mão direita e com a esquerda puxava umas baforadas no cachimbo para espantar os mosquitos. Cansado de tanto esperar e como não havia nem sinal das traíras, resolveu ir embora. Tirou o anzol da água, enrolou a linha na vara e quando se preparava para sair da lagoa, viu que em sua direção, à flor d'água, vinha uma saliência com duas bolas de cada lado, rebocando uma espécie de serra para madeira que terminava movendo-se morosamente de um para outro lado.

– Valha-me, Nossa Senhora! É o jacaré do Zé Candinha!

E sobrepondo a ação ao susto, aos pulos o Chico tentou ultrapassar os 20 metros que o separavam da margem da lagoa. O jacaré, mais rápido, alcançou-o e deu-lhe uma mordida no traseiro, pegando somente a sua calça. Devido à fragilidade do tecido, já bastante  poído pelo uso, ela se rasgou e foi arrancada do corpo por um safanão violento do animal, embaraçando-se em sua cabeça e encobrindo-lhe a  visão, fazendo com que ele desistisse da perseguição.

O Chico Preto não podia regressar à sua casa completamente pelado. Teria que passar em frente à casa da Maria Bernarda e, claro, seria visto. Não podia atravessar pelo outro lado, pois aí teria que ultrapassar a montante e era lá que o jacaré poderia estar. Ali por perto não havia nenhuma moita em que pudesse se esconder, nem uma árvore para subir.

Então teve uma idéia. Vira que a Sá Lia, mulher que não gozava de bom conceito na região em vista de sua liberalidade excessiva e que também morava às margens da lagoa, saíra com os filhos Cristóvão e Waldé,  deixando a porta somente cerrada. Entrou na casa de dois cômodos e acomodou-se como pode debaixo da cama da mulher. Ali aguardaria o anoitecer quando regressaria sem riscos ao lar.

A Virgília, mesmo se locomovendo com dificuldades, escorando-se em um bastão, mas preocupada com a demora do Chico, resolveu ir à sua procura. À Maria Bernarda perguntou se o tinha visto.

– Vi quando ele chegou lá na lagoa. Num vi se vortô não. Deve tá pur lá ainda.

Com sacrifício, a Virgília chegou ao local onde o Chico sempre pescava. Nada. Só a sua camisa junto a um cupim.

Já cansada e um tanto desanimada e recordando a história do jacaré que o Zé Candinha disse ter visto, perguntou a si mesma:

– Será que o jacaré cumeu o Chico? Ele nunca foi de demorá tanto e sumiu, dexano aqui só a camisa! Seja tudo pelo amor de Deus!

Arregimentando as últimas forças, resolveu chegar até a casa da Sá Lia, com quem não se entendia bem desde o dia em que soube que o Chico estava se engraçando com ela. Nem cumprimentou a mulher e foi logo perguntando:

– Ocê viu o Chico pescano ali perto das tabúa agora de tarde?

– Vi sim, mas eu saí com os minino pra pegá uns graveto e quando vortemo ele num tava lá mais não.

– O Chico sumiu e acho que o jacaré pegô ele!

– Pegô nada! Deus é grande!

Quando a Virgília preparava-se para ir embora, o Cristóvão, na inocência de seus cinco anos, muito assustado, chamou a mãe e perguntou-lhe:

– Mãe! Que qui é qui o Chico Preto tá fazeno pelado lá dibaixo de sua cama?

A Virgília bufou de raiva e invadiu a casa. Abaixou-se já com o bastão em posição e deu a primeira estocada no Chico, atingindo-lhe o nariz que começou a sangrar.

– Sai daí, sô sem vergonha, qui eu vô te quebrá no pau!

Ao sair, o Chico limpava o sangue com uma das mãos e com a outra tentava agarrar o porrete que a Virgília descia-lhe às costas sem dó nem piedade.

– Eu posso ispricá, Virgila. Num é nada disso qui ocê tá pensano não! Sempre fui um sujeito dereito!

Confusa com a situação, a Sá Lia tentava amenizar a situação:

– Pára de batê no Chico, Virgila. Eu nem sabia qui ele tava aqui!

– Sai pra lá, muié da vida! Quereno tomá o marido das otra, peste dos inferno! – e deu-lhe uma cacetada nas canelas!

E, no trajeto até em casa, o Chico a cada explicação que teimava em repetir, levava uma bordoada nas costas.

A separação do casal aconteceu três meses depois.

A Virgília nem ninguém acreditou na versão do Chico Preto para o caso do jacaré!

A bem da verdade, nem eu.  Apenas relatei o que ele me contou.