OUTROS "CAUSOS"

XANDOCA & DENGOSO

 

Há muitos anos, meus vizinhos da Rua Sabinópolis, entre Pedro II e Magnólia, vivem um verdadeiro martírio. Casas somente de um lado da rua e à frente delas um incômodo shopping de carros usados, com os inconvenientes naturais desse tipo de comércio, construído em terreno vago que antigamente servia para as mais variadas atividades.

Em certa época uma empresa usou a área para comercialização de veículos velhos, causando aos moradores o desconforto de terem que conviver diariamente com o barulho dos testes de motor, de buzina, de som, de frenagens violentas, que eram ali eram executados.

Após a desativação da revenda de carros, parques de diversões e circos de terceira categoria, com todos os seu inconvenientes, faziam do local um ponto favorito para suas atividades.

Dª Hermenegilda era sempre uma das pessoas mais revoltadas com a situação. Vivia em uma casa relativamente confortável que o esposo lhe deixara, tendo como única companhia a Xandoca, uma enorme cadela da raça São Bernardo. Usava lentes de contato para amenizar o elevado grau de miopia, pois julgava que óculos prejudicavam a elegância que desejava preservar, pois tinha o sonho de reiniciar sua vida conjugal, apesar dos seus mais de sessenta anos de idade e pouco além de metro e meio estatura. Já havia reclamado várias vezes com o proprietário da má utilização do terreno, feito abaixo assinado dirigido às autoridades municipais, pressionado o vereador em quem votara, sem entretanto conseguir uma solução para o problema. Os vizinhos ocasionais sempre traziam incômodos.

O circo que ocupava o terreno naqueles dias parecia ser o pior que ali tinha estado até então. Poucos e péssimos artistas, animais maltratados em jaulas sujas e inseguras, alto-falantes estridentes repetindo exaustivamente músicas de gosto discutível, preços de entrada muito baixos nas sessões diárias e, por isso mesmo, muito mal freqüentado, revoltavam o pessoal da região.

Na noite daquela sexta-feira Dª Hermenegilda não conseguira dormir direito. O barulho se estendera até altas horas, impedindo-a do descanso natural. Católica convicta e altamente participativa, levantou-se cedo, foi para a igreja, pediu perdão a Deus pelos pensamentos maldosos que tivera contra o pessoal do circo, comungou como fazia diariamente, ajudou na limpeza do templo e voltou para casa para preparar o almoço.

Para não se embaçarem com a emanação do vapor das panelas efervescentes e como não tinha dificuldade em localizar os condimentos para o preparo das refeições, Dª Hermenegilda retirou as lentes e as colocou em uma caixinha, guardando-a na gaveta do armário.

Ao dirigir-se à área externa, esbarrou em sua cadela que furtivamente entrara na cozinha e esperava avidamente que lhe fosse servida uma boa refeição.

– Já te falei, Xandoca, que não quero ocê dentro de casa – esbravejou Dª Hermenegilda pegando uma vassoura e enxotando-a, mais com ternura do que com agressividade.

Ao voltar, Dª Hermenegilda embaraçou-se na cauda do bicho que voltara à posição anterior.

– Ocê num me obedece não, né? Pois vô te mostrá.

Foi até a despensa, pegou a coleira presa a uma corrente e, disfarçando a sua contrariedade com uma dose de carinho, sussurrou:

– Eu num gosto de fazê isso não, mas ocê me obriga a ti prendê no pé de manga, lá no fundo do quintal.

Agachou-se à frente do animal, afagou-o como a pedir desculpas pelo ato, envolveu o seu pescoço com a coleira, abotoou-a e comentou baixinho:

– Ocê tá cum um mau chero muito forte e seus pêlo do pescoço tá muito grande. Semana qui vem vô te levá no veterinário pra ele te dá um bom banho e fazê uma tosa em seus cabelo que tão muito criscido. Fica inté pareceno que ocê tá mais maió...

Docilmente o animal foi conduzido por Dª Hermenegilda ao fundo do quintal, lá ficando preso debaixo da frondosa mangueira, onde lhe foi imediatamente servida uma refeição.

– Ocê hoje tá muito mal educada, Xandoca. Devorou a ração qui eu truxe de uma bocada só e ainda quebrou a bacia de plástico pareceno qui quiria cumê ela tamém. Pera aí qui eu vô buscá mais.

Ao voltar à cozinha, Dª Hermenegilda teve que atender à porta onde um empregado do circo, portando um rifle, acompanhado de outros dois que traziam respectivamente uma resistente corda e uma bacia de bofe de boi devidamente acompanhada por uma legião de moscas, que muito apreensivo, perguntou à dona da casa:

– A sinhora num viu o Dengoso pur aqui não? Inquanto o Careca tava tratano dos otros bicho ele viu a porta da jaula aberta e fugiu.

– Quem é o Dengoso?

– É um lião que nós tem lá no circo há uns dez ano. Tá muito véio mas quando tá cum fome é muito pirigoso...

– Vi não. O bicho qui tenho aqui é a Xandoca, minha cadela de istimação, presa lá no fundo do quintal. Ocês pode intrá pur esse portão aí do lado e percurá. Deus me livre de lião, minino! Eu arripio toda só de ouvi falá nessa fera!

– Pra disincargo de consciença nós vai vê, pois o portão do lado da casa tá aberto. Quem sabe ele entrô sem a sinhora se apercebê e tá iscundido lá atrás das bananera? Dá licença...

E os três entraram, encontrando-se com Dª Hermenegilda no quintal.

– Oia lá, Marreco! Oia o Dengoso marrado na arve!

– É mesmo, Furão... Cumo foi que a sinhora cunsiguiu fazê isso? Botá colera e amarrá ele no pau! Nem o Morroia, domadô dele, nunca fez isso... Nós veio aperparado inté pra atirá se ele riagisse. A sinhora tem muita corage, sá dona...

Dª Hermenegilda acordou do desmaio três dias depois na unidade de tratamento intensivo de um hospital...