OUTROS "CAUSOS"

FIRMINOVSKY, O ASTRONAUTA DA
VARGEM DO PAGA-BEM

 

– E como era o prédio da Escola?

– Um salão de aproximadamente 100 m² , nos terrenos do Sr. Alcides Pereira da Cunha, tendo aos fundos um pequeno cômodo que servia como cozinha e outro na lateral, como dormitório. Os dois comunicavam-se com a sala de aulas por marcos de porta protegidos em sua inviolabilidade por cortinas, se considerarmos um pedaço de pano como tal. Três fileiras de 8 ou 10 carteiras compunham a sala de aulas. À frente delas um quadro negro, um “Mappa Geographico do Brazil” com os 19 Estados e o Território do Acre demarcados por cores já desbotadas, um pequeno armário e a cadeira da professora atrás de uma mesa.

– Então não havia o menor conforto...

– As aulas eram ministradas para alunos do 1º ao 3º anos em um único turno, separados somente pelo corredor de carteiras, o que transformavam-nas em verdadeiro pandemônio. E a professora, sem ao menos um assistente, se desdobrava e até eram conseguidos bons resultados nas promoções e provas finais, sempre avaliadas por pessoas competentes, alheias aos quadros escolares.

– E foi aí que você estudou?

– Sim, até o 3º ano. Mas eu era um privilegiado. A professora Geraldina e sua mãe, Carlota, eram respectivamente minha tia e avó paternas. Eu vivia como num colégio interno. Um passo e já estava na sala de aulas. Meu pai, que residia em Paraopeba, a 18 quilômetros, me dava todo apoio e eu era o pioneiro na introdução de novidades na Escola. Lembro-me bem quando passei a usar os primeiros cadernos “Avante”, 48 folhas, estampados com a figura de um estudante em alerta, portando na mão direita uma bandeira brasileira e, na outra, alguns livros e ainda tendo impressos na contra-capa os Hinos Nacional e da Bandeira; cartela de lápis coloridos ou com capacetinho com apagador, apontador, caneta-tinteiro e, principalmente, uma bola de couro que substituiu as de borracha, pano e até lobeiras e que passou a fazer a alegria de todos os alunos na hora do recreio.

– A bola fez então tremendo sucesso...

– Se fez! Eu, com o “status” de sobrinho da professora e principalmente como dono da bola, era quem escolhia os times e só jogava a favor do gol que ficava na parte mais alta do inclinado campo. Não perdia uma partida e, se por acaso, o adversário demonstrasse alguma resistência, trocava alguns jogadores ou simplesmente acabava com o jogo, recolhendo a bola e guardando-a sob a minha cama.

– O futebol era a única atividade nos intervalos?

– Óbvio que as meninas se divertiam de outras maneiras e até alguns imprevistos quebravam a rotina diária.

– Como assim?

– Por exemplo, em uma visita ao meu pai lá em Paraopeba, ele me deu uma caixa de bombinhas (traques, como eram conhecidos). Eram 12 e além delas uma “cabeça-de-negro” de pequeno porte mas de potência relativamente maior. Ensinou-me o funcionamento, recomendou prudência no manuseio e explodiu uma como demonstração. Captei os ensinamentos e também fiz a experiência com sucesso. Notei que havia um tempo de mais ou menos 5 segundos, entre a ativação da bombinha e o estampido. Pelo caminho, explodi mais algumas, sendo sempre advertido pela minha avó, companheira de viagem naquele dia:

– Cuidado, isto pode explodir em sua mão!

– Ainda com seis bombinhas na caixa, cheguei na Vargem e chamei o Nero, cachorro que tanto tinha de tamanho como de covardia e que era meu companheiro nas correrias pelos campos próximos à Escola. Amarrei em sua cauda uma linha e nela três bombinhas, a espaços regulares de trinta centímetros que foram ativadas a partir da última. O animal, deitado sobre a soleira da porta da cozinha, só percebeu quando a primeira bombinha explodiu. Tentando se safar pela janela, atropelou minha tia curvada sobre o assento do fogão, derrubando a bacia onde ela lavava algumas xícaras, quebrando a sua maioria. Aí houve a segunda explosão com o cão já em plena aterrisagem do lado de fora da casa. A terceira foi seguida de um lamentoso uivo e uma carreira desabalada.

– Aí a bronca foi forte. Minha tia tomou-me as três bombinhas restantes, colocou-as dentro de um copo com água e jogou tudo fora. Mas havia ainda a “cabeça-de-negro”. E com ela é que a diversão certamente seria maior.

– Na Escola havia o Firmino, três repetições no 1º ano, caboclo evasivo, amuado, de difícil relacionamento, sempre isolado em um canto qualquer, Comentava-se até que ele não era “muito bom da cabeça”. Um dia, a pretexto de dor no dedão, eu não levei a bola para o recreio. Reuni cinco ou seis colegas e pedi a eles que distraíssem o Firmino, acocorado sobre um tijolo, comendo a merenda composta de farinha de mandioca com uns pedaços de rapadura, enquanto, por trás eu ativaria a bomba e a colocaria debaixo dele. E assim foi feito. Acionado o artefato, nos afastamos correndo e o Firmino sentindo o cheiro da pólvora queimada e aquela fumaça subindo, firmou-se na ponta dos pés na tentativa de tomar impulso para pular e desvencilhar-se daquilo, quando o petardo explodiu. O Firmino, embalado pelo salto e pelo deslocamento do ar, subiu uns trinta centímetros e gritou lugubremente:

– Murriiiiiiiii!!!

Esborrachou-se na horizontal, com os olhos arregalados, babando e roncando, com a farinha esparramada no rosto, contrastando com sua pele escura.

– E o Firmino não morreu, né João?

– Claro que não. Minha tia e os alunos rebocaram-no para dentro de casa, jogaram água fria em seu rosto, friccionaram-lhe o pulso com álcool e alecrim, deram-lhe um chá de erva-cidreira e ele foi, aos poucos, se recuperando. Eu, aproveitando o tumulto, caí fora, subi no ingazeiro e me ajeitei no esconderijo secreto que possuía em sua parte mais alta. Só fiquei aliviado quando lá de cima vi minha tia conduzindo o Firmino em direção à sua residência. Desci da árvore e voltei para casa na certeza de que o incidente fora superado e eu perdoado mais uma vez.

– Menino, onde você estava? – perguntou minha avó. A Dina está uma fera com você! Vou lhe preparar um banho e vê se troca essa roupa toda suja!

Achei aquilo estranho pois além de não ser muito chegado a banho, nem sábado era. Não discuti, pois no momento não tinha moral para nada. Minha avó pôs a bacia no quarto, colocou a água e quando me preparava para as primeiras esfregadas, notei que minha tia acabava de chegar.

– Aquele capetinha já apareceu? Ele me paga! De hoje não passa!

– Já sim, e como combinamos, está lá quarto tomando banho. Pode agir!

Então ela foi até o salão da Escola, pegou uma vara de marmeleiro que ficava junto ao quadro negro como instrumento de intimidação, afastou a cortina que separava os dois cômodos, mirou as minhas costas e deu a primeira cipoada. Acertou em cheio e eu, na pressa da fuga, levantei-me da bacia, subi na cama e me embalei para saltar a janela. Aí veio a segunda que, com um assobio no ar, me atingiu a retaguarda como uma bola de fogo. Dei um berro de dor, consegui escapar e sair em desabalada carreira em direção ao ingazeiro, só que acompanhado pelo Nero, que fazia festas ao meu lado, latindo e sacudindo a cauda alegremente.

– Desce daí, menino. A altura em que você está é grande e vai se machucar muito se cair daí! – Era minha avó que, ao lado da Dina, havia me localizado, denunciado que fui pelos latidos do Nero que tentava inutilmente me acompanhar na subida à árvore.

Nenhuma resposta. Só os soluços reprimidos e o propósito de nunca mais retornar.

– Olha mãe – ouvi minha tia dizer – vamos deixar a roupa aqui em cima deste cupim e se ele não voltar até o anoitecer, vou mandar o Zé Preto amanhã em Paraopeba chamar o David e mandar que leve esse índio para morar em sua companhia, pois não suporto mais o seu comportamento.

Era tudo o que eu não desejava! Deixar a Escola, meus colegas, a Vargem do Paga-bem, o Nero, o ingazeiro e aquela liberdade toda, nem pensar! Nada neste mundo faria com que eu trocasse tudo aquilo pelo ambiente hostil como a casa de meu pai e a cidade que mais me parecia uma imensa prisão. Desci da árvore e, humildemente, fui pedir perdão às duas mulheres que foram minhas verdadeiras mães e protetoras, ontem e sempre!

Mas tudo acaba. Meu pai morreu e minha tia foi transferida. Tive que voltar para Paraopeba. Casa de parentes, quarto ano no “Afonso Pena”, oficinas da “Gazeta” e finalmente a cidade grande de onde tento inutilmente me desvincular. Assim como meu pai, minha avó, minha tia, o Firmino, alguns outros colegas da Escola, o Nero, também um dia darei adeus, porém sem jamais perder a condição de capiau, amante do congado, do pequi, do araticum, da folia de reis e principalmente da Vargem do Paga-bem que perdeu a maioria dos habitantes, a Escola e até a identidade, substituída que foi, compulsoriamente, por Fazenda Santa Maria...

– Eta saudade danada, sô! E como dói!...